
Olhei-o profundamente nos olhos. Por momentos senti que à minha volta tudo desacelerava, como se a própria luz reduzisse a sua intensidade. Em abono da verdade, ao olhá-lo profundamente nos olhos, senti que à minha volta tudo permaneceu suspenso, como que a dar-me tempo para estabelecer todas as conexões necessárias. Ouvi uma voz, vinda das profundezas das entranhas do meu ser, que me dizia não vale a pena, deixa, não vale a pena.
Com o meu olhar mergulhado no dele, admiti a mim própria que era ali, naquela chafurdice de pensamentos, lamúrias, tristezas, sofrimentos, que o meu Pai queria estar. E todos os meus argumentos, todas as minhas tentativas de perspetivar de um outro ângulo os acontecimentos, apenas e só batiam, com toda a força, naquela construção empedernida de cimento onde desejava continuar a sofrer.
Há duas horas, quando entrei em casa, encontrei-o com os olhos sapudos e vermelhos, aquela expressão parada, perdida, como se nada existisse para além daquele mergulho numa imensa tristeza e apatia. Entre suspiros, lágrimas escondidas e um corpo aninhado, como se não tivesse direito a respirar, consegui perceber que o carro tinha avariado. Que o conserto era caro. E que, a partir deste detonador, se juntaram as questões existenciais – não sei para que é isto tudo, já não sei o que ando para aqui a fazer, nada faz sentido, não valho nada, … -, juntaram-se as dúvidas relativamente à área profissional – não sei se estou no caminho certo, se o que faço serve para alguma coisa, não me sinto bem no que faço, … – juntaram-se os dissabores enquanto progenitor – nem sequer fui um bom Pai, não te dei atenção, não tive tempo para ti, se tens os problemas que tens, a culpa é minha, … – juntaram-se as mágoas associadas aos afetos – nada dá certo na minha vida, nenhuma relação funciona, não consigo ter alguém ao meu lado … E, a somar a tudo isto, o carro que avariou.
Há duas horas, comecei a ouvir toda esta miscelânea de sentimentos. E, como sempre fiz, procurei que visse para além da dor, da tristeza, da insatisfação, da mágoa. Procurei que encontrasse o seu valor, que reparasse nesse ser magnífico que é, para além da insignificância que estava a fazer crer a si próprio. Procurei exemplos, situações palpáveis. De nada adiantou, de tal forma estava centrado na sua vitimização. Completamente absorvido por essa análise relativa, parcial e de pena por si próprio.
Olhei-o profundamente, como se, naquele instante, fossemos apenas um. E compreendi finalmente tudo.
A emoção que me invadia era de uma intensa frustração. Apesar das minhas tentativas, o seu foco continuava igual – tal como há duas horas, tal como há anos. Há muito anos, já.
Toda a vida, desde que me lembro, ele teve estes momentos. E eu procurei, em todos eles, retirá-lo desses estados de sofrimento. Desde que me lembro, tentei ajudá-lo, apoiá-lo. E o resultado foi sempre o mesmo: como hoje, apenas colocava cá fora as suas amarguras, as suas revoltas e, sobretudo, os seus medos. E ficava a nadar na vitimização.
Olhei-o profunda e demoradamente. Apenas sentindo a dor que se intensificava no meu peito. Apenas sentindo a frustração de não conseguir tirá-lo desse sofrimento. Apenas sentindo a impotência perante o seu estado.
Durante – quase – toda a minha vida, ouvi os seus lamentos e revoltas. E o que eu sentia era que me era pedida alguma coisa, que tinha de fazer algo, dizer algo, tirá-lo daquele sufoco. O que eu sentia – sem nunca o ter verdadeiramente compreendido – era que me competia a tarefa de aliviar essa carga. E, durante – quase – toda a minha vida, perante esse seu (comum) estado, fui construindo em mim mesma a insegurança, fui potenciando a minha baixa autoestima, sentindo-me – sempre que o tentava ajudar e não o conseguia – incapaz, insuficiente.
Olhei-o profunda e demoradamente. Compreendi que a frustração e a impotência que eu sentia – que há muitos anos sentia – tinham-se transformado em autodesvalorizações. Compreendi que, ao não conseguir que deixasse o papel de vítima, que apenas agora se tornou claro para mim, eu tinha crescido a ver-me como incapaz, como insuficiente, como se faltasse sempre algo – porque eu nunca conseguia tirá-lo desse sofrimento. Compreendi que sentia culpa, porque afinal era incapaz de o ajudar – e sentia que estava, constantemente, a falhar perante o meu Pai.
Durante – quase – toda a minha vida aprendi (e escolhi, compreendo agora) a dedicar-me aos outros, na tentativa de os ajudar, sentindo no mais profundo de mim mesma, que algo faltava, que algo falhava, que eu falhava. A insegurança acompanhou-me em todas as áreas da vida: profissionalmente, defrontando-me a todo o momento com o medo de falhar, receando a cada novo projeto não conseguir, não ser capaz; socialmente, quando me comparava com os outros sentindo-me menos-do-que-os-outros; afetivamente, rodopiei na vã tentativa de salvar todos os homens que conheci, sentindo – constantemente – que havia algo que eu não estava a fazer para que aquela relação desse certo.
Olhei-o profunda e demoradamente. Compreendi que, na minha tentativa de o poupar ao sofrimento, tinha construído um ser inseguro e com receio sistemático de falhar. Compreendi que, afinal, com as minhas tentativas de ajuda, apenas tinha conseguido perpetuar o comportamento do meu Pai, reforçando a sua tendência para a vitimização.
Olhei-o profunda e demoradamente. Olhei-me profunda e demoradamente. No mais recôndito do meu ser. E compreendi.
CViterbo
Gostar disto:
Gosto Carregando...